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Poética da Urbanidade - Estudos interculturais
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Genova
Materiais para as discussões do Colóquio Internacional de Estudos Interculturais (2004)

 

GENOVA-SÃO PAULO NO PROGRAMA DE ESTUDOS INTERCULTURAIS "POÉTICA DA URBANIDADE" PELOS 450 ANOS DE SÃO PAULO

O PROCESSO CRIADOR NO URBANISMO, NA MÚSICA E NAS CIÊNCIAS
Gênova, 17 de setembro de 2003

Súmula

 

"Brasília é paradigma daquilo que você diz que deve ser evitado na arquitetura. Projetar em breve tempo em um espaço inicialmente deserto, é uma criação totalmente artificial. O oposto é o caos da favela, a anti-Brasília, distante apenas poucos quilômetros da capital. Dois ambientes diversos, mas ambos desumanos."

Esta afirmação foi feita por Tullio Regge durante uma discussão interdisciplinar a respeito dos métodos e das leis do processo criador. Sentido como um processo similar atuante em diversos campos científicos e artísticos, a criação foi nesse debate refletida por três personalidades representativas das ciências e das artes: além de Regge, representando a física, Luciano Berio e Renzo Piano responderam respectivamente pela música e pela arquitetura.

Ponto de partida das reflexões foi o pensamento de Luciano Berio, segundo o qual toda a forma de creatividade jamais seria um fato individual, exigindo interação de várias pessoas, tal como a música intérpretes. A criação teria, assim, um caráter de diálogo. Aqueles envolvidos nesse processo não teriam pensamentos surgidos do nada, pois fariam parte de um processo cultural e evolutivo e, talvez, de um projeto educativo. Assim, a creatividade musical implicaria em diálogo com o público, o que nem sempre seria pacífico, pois este teria como pressuposto a capacidade de apreciação. Hoje em dia, pelo menos na Itália, pela falta de Educação Musical de base, seria constatável uma falta de condições para um diálogo creativo e sensível.

Essa crítica de Berio à situação italiana baseou-se na sua particular visão do desenvolvimento histórico do pensamento musical. Este teria estado inerte quase dois séculos na História da Música italiana. Enquanto que, no século XIX, criara-se na Alemanha a música que levaria ao futuro, com Beethoven, Wagner, Mahler e Schönberg, a Itália, apesar das belas obras de Rossini e Verdi, quase não exercera influência no pensamento musical global. O mesmo poderia ser dito com relação à pintura. Essa relativa falta de peso deveria, hoje, em uma visão mais européia, favorecer novas formas de responsabilidade cultural. A questão da creatividade científica seria diferente, pois incluiria o fator "progresso", o que a música não conheceria. Mais interessante seria procurar institutir um paralelismo entre a arquitetura e a música. Ele próprio, Berio, sempre procuraria aproximar o seu trabalho àquele de um arquiteto, embora as responsabilidades sejam diversas: se um arquiteto erra, por exemplo, acaba na prisão, um perigo que o músico não corre.

Tomando essa argumentação altamente discutível e inconsistente de Berio, o arquiteto Renzo Piano partiu positivamente da última afirmação, concordando em dizer que a música representa a arquitetura mais imaterial possível. Seria incrível, para ele, constatar quantos elementos do fazer musical aparentam ser similares àqueles do fazer arquitetura. Em ambas o construtor parte de uma estrutura primordial, prosseguindo para os pormenores. Ele teria percebido que Berio usava freqüentemente metáforas arquitetônicas, por exemplo afirmando que a música representaria um edifício no qual se colocavam novos compartimentos e novas janelas. Os arquitetos, porém, deveriam hoje indagar os motivos da feiura atual das cidades. Um dos principais fatores seria a pressa. As cidades estariam sendo construídas rapidamente demais. As cidades seriam compostas por casas, e quando as casas, no passado, eram construídas uma após a outra, cada uma tinha a sua história e individualidade. Era uma qualidade difusa. Hoje, porém, tudo seria construído ao mesmo tempo: cidades inteiras nascem em poucos anos graças ao progresso tecnológico. Esse progresso estaria relacionado com um novo tipo de analfabetismo cultural e moral. Essa pressa, filha da técnica, levaria à banalidade. A beleza da cidade residiria numa relação estreita com a sociedade. Um antropólogo diria que uma cidade rude produziria gente rude...e vice-versa. Poder-se-ia dizer que a gente e a cidade seriam espelhos uma da outra.

Essa afirmação de Renzo Piano a respeito da relação especular, de homologia entre a sociedade e a cidade, veio de encontro ao pensamento de Tullio Regge. Também para ele haveria uma influência recíproca entre o fato arquitetônico e o homem que nele habita. Ele o teria experimentado na diferença que constatou entre a Universidade e o Politécnico de Turim, uma totalmente fragmentada, outro um conjunto arquitetônico que possibilitava o contacto entre os estudiosos.

Para Renzo Piano, apesar de todas as precauções na expressão do seu pensamento, um dos problemas do desenvolvimento dos conceitos arquitetônicos desde o século XIX seria a idéia do valor da pureza na Arquitetura. Essa ideologia de o "menos seria mais" teria levado a um desprezo pelo detalhe e, mais ainda, a um "fazer o menos possível". Ele pretenderia escrever um texto a respeito do progresso nas artes. Somente os ignorantes pensariam que na arquitetura o criador deveria ser rigorosamente original. Não seria possível sempre inventar coisas novas. Muito seria transcrito, roubado, readaptado ­ como na música. A tradição seria fundamental na arquitetura e em todas as artes.

Para Regge, o progresso no campo científico residiria no impulso individual ao conhecimento, o que corresponderia ao impulso de dominação. Dois processos estariam coligados, o dos conhecimentos e o tecnológico. Permaneceriam, porém, distintos. Para o público, o crescimento contínuo dos conhecimentos seria extramemente difícil de ser acompanhado. Haveria um aspecto essencial diferenciador da produção científica daquela das várias formas artísticas. Os cientistas estariam vinculados a determinadas regras, estando sempre confrontados com fatos empíricos. O que caracterizaria uma teoria científica, construída através de tentativas, seria a sua capacidade de corrigir falsificações. Sobreviveria somente a teoria que resistisse às confutações. Haveria constantes no processo creativo humano, seja científico, seja artístico. O homem agiria nos diversos campos segundo procedimentos mentais similares. Jamais se criaria a partir do nada. Quando se tinha tentado fazê-lo, os resultados foram como Brasília, uma cidade que sempre teria suscitado nele uma sensação de absoluta repulsa. Ele preferiria a selva.

Berio admitiu as razões desse tirocínio, pois, para ele, também na música se consideraria frequentemente a criação musical como fruto de uma idéia romântica. Nas suas longas reflexões a respeito das diferenças e similaridades entre a arquitetura e a música, Berio enxergara as principais semelhanças no uso dos materiais. Poder-se-ia constatar uma abertura no pensamento musical e no arquitetônico, este cada vez mais dedicado ao uso de materiais mais leves, transparentes. A música, em particular a eletrônica, encontrar-se-ia agora em condições de coordenar o extremamente pequeno e o extremamente vasto.

Para Renzo Piano, também na arquitetura não se começaria do geral para chegar-se ao particular. Seria um duplo movimento, do geral ao particular e do particular ao geral. Também se poderia começar a construir a partir de fragmentos. Seria um movimento circular, contínuo. O contrário seria a arquitetura acadêmica, que desprezaria os detalhes, deixados para o técnico. Nesse caso, somente interessaria a grande idéia.

Um aspecto importante na criação musical presente seria para Berio o interesse em abrir a música aos mais diversos fenômenos, incluindo a potencialidade musical de rumores da natureza e complexos historicamente desenvolvidos. Este processo não seria dedutivo. Com relação à música de Beethoven, poder-se-ia estruturar uma narração do processo creativo. Hoje, porém, seria diferente. Não haveria um ponto de partida e um de chegada, haveria uma globalidade no pensar.

Para Renzo Piano, haveria uma estranha mistura na profissão do arquiteto, situado na encruzilhada entre a arte e a técnica. A leveza e a transparência não seriam qualidades físicas, mas do espírito, da mente, do espaço. Os elementos imateriais seriam importantíssimos na arquitetura. A luz e as transparências seriam elementos que não poderiam ser tocados, mas decisivos. A atmosfera não pode ser construída através de paredes, ela seria criada com a luz e suas variações. A luz teria uma capacidade transformatória, de metamorfose da arquitetura. Se houvesse uma analogia entre a arquitetura e a música, esta estaria no aspecto imaterial.

Curioso nessa discussão foi o peso dado a aspectos relativadores dos problemas ético-estéticos relacionados com a cópia e a assimilação de idéias e soluções de outros. Tratados sob o prisma do relacionamento entre professor e discípulo, salientando-se o respeito e a gratidão para com mestres e a importância da "desobediência", surgiram afirmações altamente questionáveis. Para Renzo Piano, pelo que tudo indica, tornou-se essencial uma referência a Hans Scharoun, a quem diz dever muitos estímulos. A Filarmonia de Berlim seria uma obra extraordinária. Ela fascinaria sobretudo pela sua forma pentagonal. A sistematização semi-baricêntrica da orquestra seria o mais interessante. Para um edifício com 2700 lugares teria sido necessário criar um senso de participação do público. Isso teria sido alcançado com a colocação da orquestra no centro. Ao projetar o Auditorium di Roma, porém, sentiu que a solução de Sharoun não poderia ser aceita. Sentiu-se livre para criar uma espécie de instrumento musical. Com isso quis demonstrar como seria importante crescer a partir da experiência de outros, subir, para ver mais longe. Encerrando, Renzo Piano insistiu na sua convicção de que a creatividade não representa um patrimônio deste ou daquele ramo da arte ou do saber: ela é geral à espécie humana, do cientista ao musicista, do agricultor ao artesão.

Essa discussão, sob tema de essencial importância para as ciências da cultura e em especial da urbanologia, levada a efeito por três prestigiados representantes da arquitetura, música e da ciência, apesar de todos os seus aspectos instigantes, decepcionou pela superficialidade com que foi desenvolvida. Ela não representou, em absoluto, o estado dos conhecimentos e das reflexões atuais. Apresentou-se repleta de afirmações subjetivas dos interlocutores, tratando de assuntos e temas filosóficos que não dominam. Necessitaria ser considerada criticamente e de forma diferenciada em quase todos os seus pontos. Essa discussão pode ser vista como um exemplo daquilo que em diálogo interdisciplinar não deveria ocorrer, ou seja, diletantismo.

Antonio Alexandre Bispo

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