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Poética da Urbanidade - Estudos interculturais
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Ochos Rios
Materiais para as discussões do Colóquio Internacional de Estudos Interculturais (2004)

 

OCHO RIOS-SÃO PAULO NO PROGRAMA DE ESTUDOS INTERCULTURAIS "POÉTICA DA URBANIDADE" PELOS 450 ANOS DE SÃO PAULO

MECANISMOS DE ESCRAVIZAÇÃO DA CIDADE TERRENA
Ocho Rios-Jamaica, 19 de março de 2003

Súmula

 

O problema da escravidão, suas causas e conseqüências no continente americano, uma das mais trágicas e vergonhosas páginas da História da Humanidade, representa um campo de estudos de particular importância em vários ramos das ciências culturais euro-americanas. Ele é tratado sobretudo sob o ponto de vista da escravidão africana e caracteriza, assim, sobretudo, a pesquisa na área da Afro-Americanística. Também na pesquisa musical a escravidão surge como um tema sempre presente, e a sua história justifica elucidações, teorias e hipóteses a respeito da gênese de instrumentos, formas e gêneros. Em estreito relacionamento com a pesquisa musical, a Ciência das Religiões das Américas dá particular ênfase à escravidão como suposta razão da permanência de formas religiosas e sincretísticas de culto praticadas sobretudo por descendentes de africanos e portadoras de expressões de cunho africano.

Entretanto, até hoje pouco foi considerada a perspectiva urbanística na gama de questões culturais relacionadas com o problema da escravidão. Por essa razão, torna-se absolutamente necessário dirigir uma maior atenção às imagens urbanológicas referentes à escravização no repertório simbólico da ordem cultural implantada nas Américas com a conquista e a conversão.

Perspectivas no tratamento da questão podem ser modificadas e as visões se ampliam. A partir daí é que se pode analisar o elo íntimo existente entre a música e as concepções urbanológicas com relação a um problema que deixa de ser um capítulo encerrado da história e se manifesta como um processo ainda eminentemente atuante, capaz de contribuir ao exame dos graves problemas sociais da atualidade.

O fundamento alegórico da ordem simbólica da cultura implantada nas Américas foi elucidada pelo apóstolo Paulo. Interpretando a história de Abrahão, Sara e Agar, explica que esses vultos bíblicos devem ser vistos como alegorias de dois tipos de cidades, uma divina, espiritual, e outra terrena, carnal. A verdadeira mulher de Abrão era Sara, Agar seria uma escrava egípcia. Como Sara era infértil, Abrão teve um filho da escrava Agar, ou seja, Ismael. A escrava tornou-se com isso insolente com relação à Sara. Com a transformação espiritual de Abraão - manifestada na troca de seu nome - Sara, apesar de sua idade avançada, gerou um filho: Isaque. Por determinação de Sara, a escrava e seu filho foram rejeitados. De Ismael se originaram os ismaelitas, de Isaaque o povo de Israel. Como Paulo elucida, esses dois filhos devem ser considerados também como sendo alegorias para os conceitos de fruto do espírito e da obra da carne. Ambos se combatem através dos séculos e Isaque, filho do espírito, é pré-figuração do cristão.

A cidade carnal, a Jerusalem terrena, personalizada em Agar, surge, portanto, como escrava egípcia, sujeita a Sara, embora também identificada com o monte Sinai, cuja localização foi designada pelo apóstolo na Arábia. Ela fora trazida do Egito, onde Abrão tinha ido procurar bens materiais e Sara tinha sido encerrada no palácio do Faraó. Enquanto Abrão dirigira o seu senso ao mundo exterior, atento a riquezas, Sara permanecera infértil. Ele conviveu com a escrava e dela procriou. Esse convívio significa que Abrão, no sentido metafórico, habitava interiormente em cidade terrena. Ele vivia a sua vida terrena.. Nessa situação, a sua vida espiritual, personificada em Sara, mantinha-se presa no palácio do soberano do Egito e era improdutiva. Mais tarde, essa vida terrena, já sujeita a Sara, que saíra do Egito, dera-lhe frutos. Entretanto, Abrahão corria o perigo de ser dominado novamente pela sua vida terrena, pois esta arrogava-se gradualmente domínio sobre ele e sua vida espiritual. Abrahão precisou abandonar essa esfera ou cidade em que metaforicamente vivia.

O Egito surge nessa linguagem simbólica como país de homens carnais e sensoriais. É a mesma simbólica que se manifesta mais tarde, no relato da saída do povo de Israel do Egito, atravessando o Mar Vermelho. Também surge no Evangelho, quando a sagrada família teve de se dirigir ao Egito para que o Filho de Deus pudesse de lá ser tirado, cumprindo a profecia.

Na interpretação simbólica dos evangelhos, elucidada por muitos teólogos e comum na época da conquista e conversão das Américas, a personificação das duas vidas é vista nas santas Marta e Maria Madalena. Marta representaria a vida ativa, Maria Magdalena a vida contemplativa. Também aqui a vida contemplativa adquire maior significado, é ela que, nas palavras do próprio Cristo teria escolhido a parte melhor e seria testemunha da Ressurreição. Entretanto, Marta e Maria Madalena surgem aqui como irmãs, com características distintas e contrárias, porém em relação fraterna. Marta não é a escrava de Maria Madalena, tal como Agar fora de Sara, apesar de todas se referirem às duas formas de vida do Homem. Aqui também já não se fala de vida carnal com relação à Marta, mas sim de vida ativa, uma vida entregue ao trabalho. A escravidão surge, portanto, apenas no contexto do Velho Testamento e como prefiguração de uma relação fraterna no Novo. Considerando o relacionamento do Velho com o Novo sob o ponto de vista tipológico, ter-se-ia no Velho "Tipos", no Novo "Anti-Tipos". A escravidão diz portanto respeito à Tipologia, não à Anti-Tipologia.

Como também elucida o apóstolo Paulo, o Homem Novo, renascido, enquanto vive no mundo terreno, continua sujeito a forças naturais, essas, porém, já não o mantém em escravidão, porém são aios que o protegem até que passe para o outro mundo. O Homem Velho, porém, ainda não renascido, permanece escravizado a esses deuses ou demônios. As cidades em que o Homem Velho vive correspondem alegoricamente a Sara e Agar, os seus frutos são na tradição cristã os judeus e os mouros.

Os dois tipos de cidades, a Jerusalem terrena e a Jerusalem celestial, na urbe cristã do Novo Mundo, surgem como duas irmãs interligadas, a vida ativa da urbe e a vida contemplativa. O homem orienta-se aqui segundo os modêlos de Marta e Maria Madalena. Entretanto, o sistema de concepções inclui indelevelmente a dimensão tipológica, ou seja, a idéia de escravidão faz parte inerente do todo. Sendo a conquista e conversão não episódios encerrados do passado, mas sim processos ainda dinamicamente atuantes no presente, a escravização faz parte desse processo. A cidade escravizada é aqui o estado terreno, aquele que se deixou tirar do Egito pela vida espiritual, ainda que, porém, de forma escravizada. No Egito, a vida espiritual, que para lá fora no anseio de obtenção de bens materiais, esteva presa no palácio do Faraó. Conseguiu de lá sair, logrou abandonar o Egito, trouxe, para isso, a vida terrena disciplinada ou sujeita à sua vontade. A escravidão surge aqui como fato positivo, como simbolizando a necessária sujeição da vida terrena à vida espiritual. Somente quando esta se rebelou contra a sua Senhora é que foi rejeitada. A vida terrena, neste conjunto de conceitos, deve ser portanto escravizada e manter-se em atitude mansa de sujeição.

A estrutura de pensamento urbanológico inclui, assim, um aspecto altamente crítico com relação à cidade terrena, com incalculáveis conseqüências para todas as reflexões sócio-culturais e para o desenvolvimento de um conceito de urbano ecológico, de uma cidade mais próxima à natureza. Somente com grande cuidado pode-se aqui superar as múltiplas possibilidades de mal-entendidos com relação ao repertório de imagens da ordem simbólica da cultura transplantada para o continente americano.

Antonio Alexandre Bispo

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