São Paulo 450 Anos
Poética da Urbanidade - Estudos interculturais
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Materiais para as discussões do Colóquio Internacional de Estudos
Interculturais (2004)
SAMANA-SÃO PAULO NO PROGRAMA DE ESTUDOS INTERCULTURAIS "POÉTICA DA URBANIDADE" PELOS 450 ANOS DE SÃO PAULO
CRISE ECOLÓGICA E PROBLEMAS DE MÉTODO NA ANÁLISE DE PROCESSOS
SIMBÓLICOS DO URBANO
Samana, 27 de março de 2003
Súmula
A questão ecológica surge como sendo de primordial na discussão
das relações existentes entre os estudos culturais, as condições
urbanas e os processos de urbanização do presente. Como James
Wines salienta no seu livro "Arquitetura verde" (Grüne Architektur,
Köln, 2000), a crise ambiental da atualidade ofusca todos os demais
problemas, sejam sociais, políticos, econômicos e científicos,
uma vez que uma destruição do gênero humano após a destruição
do planeta fazem com que todos os demais problemas se tornem secundários.
Essa posição se alia a uma crítica generalizada da arquitetura
do século XX. Esta teria começado com o louvor da idade industrial
e da técnica, transformando-se apenas com o advento da nova época
da informação e da ecologia. Em 1923, Le Corbusier teria anunciado
um "novo espírito", salientando que a indústria traria aos arquitetos
os novos meios auxiliares adequados ao novo espírito da época.
Hoje, porém, constatar-se-ia que esse portentoso processo transformara-se
em inimigo da natureza e em verdadeira ameaça global. Por essa
razão, a arquitetura passa a ser um dos principais pontos de discussão
e de reformas dentro do movimento ecológico. Infelizmente, porém,
para o autor, muitos arquitetos ainda trabalham segundo os princípios
decantados por Le Corbusier. Enquanto este via a casa como uma
"máquina de morar", os ecólogos preferem antes ver a terra como
sendo a verdadeira "máquina ultimativa".
O problema central da arquitetura e do urbanismo da atualidade
reside, nessa corrente de pensamento, na falta de vínculos com
a natureza. Essa falta de vínculos apenas poderia ser modificada
se a filosofia de vida se modificasse. Somente um contacto maior
com a natureza a plano mental e psíquico poderia levar a essa
transformação profunda da vida. Os processos, porém, que estão
em andamento, e que controlam todos os aspectos da relação do
homem com o meio ambiente não permitem grandes visões otimistas.
A arquitetura teria uma função importante do ponto de vista de
conservação de recursos e de comunicação com relação a um futuro
mais responsável ecologicamente. Ela, porém, evitaria em geral
recursos psicológicos e simbólicos e teria sempre a tendência
a louvar a técnica. O seu significado iconográfico seria a antítese
de um ecocentrismo. Ter-se-ia a necessidade, portanto, de dar
início ao processo transformador com a modificação de sua iconografia.
Para James Wines, as mais difíceis questões, quando discutidas,
levam os participandes do diálogo diretamente às raízes da evolução
cultural e religiosa da Humanidade desde o advento das grandes
religiões. Para ele, o homem deveria dar mais atenção às antigas
civilizações politeistas e às culturas indígenas. O problema residiria,
aqui, no integrar tais concepções ao monoteísmo dominante do presente.
A solução para o impasse nas concepções urbanológicas atuais estaria,
assim, no estudo comparativo das religiões e, sobretudo, no diálogo
das religiões em relacionamento intercultural. Tornar-se-ia necessário,
nesse modêlo de pensamento, rejulgar a questão da divinização
de forças naturais da antiga mitologia e das antigas religiões
no seu relacionamento com a idéia de uma divindade superior e
sobrenatural. Seria necessário desenvolver uma iconografia eco-digital
visionária na arquitetura e no urbanismo.
A integração de conceitos da ciência da computação e da ecologia
poderia levar ao desenvolvimento de um universo de imagens representativo
dos processos de mutação, de evolução da natureza, e, ao mesmo
tempo, da corrente de dados da comunicação. Ter-se-ia necessidade
de pontes a serem construidas entre tecnologias de proteção ambiental,
as teorias filosóficas fundamentadas ecologicamente e a sua representação
numa nova linguagem de imagens e formas.
Sobretudo a concepção bíblica segundo a qual o homem deveria dominar
a natureza necessitaria ser alvo de sensíveis interpretações que,
sem falsificar os textos, deconstruisse falsos edifícios exegéticos
e reconstruísse tradições perdidas da hermenêutica.
Esse processo deconstrutivo implica, porém, ele próprio, em revisão
de conceitos urbanológicos transmitidos por símbolos na cultura
européia e transplantada para o continente americano. Imagens
centrais nessa ordem simbólica da cultura referem-se à cidade
e à natureza.
Fundamento dessas concepções são as idéias relacionadas com a
criação da matéria, transmitidas pela interpretação teológica
e filosófica através dos séculos com base na Gênese. A matéria
ou terra, na linguagem alegórica, foi simbolizada por uma figura
de mulher com a parte inferior do corpo em forma de serpente.
Em algumas tradições, foi chamada explicitamente de Eden. Na idéia
do Paraíso tem-se a noção de uma terra frutífera e intacta, estado
modificado com a queda de Eva. Aqui se encontram as bases de um
relacionamento dissonante entre Eden e Eva, entre a terra e a
luz (da lua) que, segundo as interpretações do processo criador,
penetram nas águas. Esse contraste básico, essencial para a compreensão
de conceitos urbanológicos, não diz respeito, portanto, a uma
oposição entre a terra e a água, mas sim entre matéria e luz.
Com a maldição da terra, após a queda de Eva e Adão, a terra tornou-se
infrutífera.
Segundo certas tradições interpretativas do Gnosticismo da Antiguidade,
a árvore do conhecimento do bem e do mal seria um demônio feminino,
sincretizada com Afrodite. Eden teria sido, posteriormente, coberta
do sangue derramado de Abel, assassinado por Caim, o agricultor,
filho de Eva. Nela surgira a primeira cidade, denominada antropomorficamente
segundo o filho de Caim, Enos. Esta fora, portanto, uma cidade
de terrenos, - na realidade mortos com relação à verdadeira vida.
Filho da terra foi o cego Lameque, amaldiçoado, que teve duas
mulheres, Ida e Ada, também alegorias da vida terrena e da vida
espiritual. Filho da vida espiritual foi Tubal-Caim, o ferreiro,
filho da vida terrena, e Jubal, o inventor de instrumentos. Conceitos
de vida terrena e música instrumental estão assim, intimamente
interligados. O terceiro filho de Eva, que veio a substituir Abel,
Set, foi o grande habitante dos altos, e o estado ou cidade dos
Setitas tornou-se o paradigma das cidades altas. A queda dos Setitas,
misturando-se com os Cainitas, moradores das zonas baixas, levou
à deturpação geral do gênero humano e ao dilúvio.
Na tradição afro-americana, em continuidade a correntes históricas
de hermenêutica alegórica, esses vultos bíblicos são percebidos
como personificações e o sistema de conceitos é expresso em forma
de imagens.
A idéia de cidade terrena, portanto, está intimamente relacionada
com o conceito da maldição da terra e da necessidade do homem
de cultivá-la, assim como ele disciplina a sua vida terrena. Esse
sistema de representação alegórica das forças e potências do homem,
aplicados à natureza representa, porém, um mal-entendido de graves
conseqüências.
Tudo indica haver, na exegese bíblica, um problema de relacionamento
entre narratividade e estrutura. Conceitos estruturais ou sistemáticos
da vida interna do homem são apresentados de forma narrada. Para
isso, tornou-se necessário estoriar a dinâmica das forças e potências
interiores. Utilizou-se, nesse sentido, de processo analógico
com relação ao mundo exterior ou natural. Empregaram-se imagens
de fácil entendimento para a elucidação por assim dizer didática
de estruturas e processos dinâmicos internos.
Percorrer o caminho contrário, porém, ou seja, ver na narração bíblica realmente a gênese e as estruturas básicas do mundo natural, isso significa uma antropomorfização da natureza, de sérias conseqüências. Essa antropomorfização é altamente superficial, pois as analogias utilizadas para elucidar estruturas internas ao homem foram tiradas do mundo visível ou perceptível pelos sentidos. Reverter o caminho, portanto, corresponde a re-projetar exterioridades no mundo natural.
Antonio Alexandre Bispo